A garota holandesa

19:17:00

Os primeiros raios de sol começam a entrar nas frestas da janela do velho casarão e Flor se dirige à sua bicicleta que está parada próxima à entrada. Todos os dias a moça de cabelos castanhos vai até a padaria Santa Luzia, rua à cima, para comprar ovos, pães e cigarros.

Nascida Fleur, a jovem holandesa desembarcou há onze meses no terminal rodoviário de São Luís, Manoel, que estava no local para receber alguns clientes ficou sensibilizado (há quem diga que encantado também) com a jovem que só sabia pronunciar "ajuda" e "bom dia". Longe de completar qualquer diálogo com a moça o senhor recorreu a sua filha Carol, que o acompanhava, para perguntar se ela estava bem ou se estava perdida.

Em uma conversa rápida em inglês, Carol voltou para o seu pai e disse que a moça precisava de um lugar pra ficar por uns dias e que estava fugindo de seu país.

Fleur entrou na pequena van e foi levada para o centro da cidade, sempre com os olhos atentos para as luzes fracas que tentavam, de forma inútil, iluminar as avenidas irregulares.

Pelo centro da cidade eles percorreram algumas ruelas onde dificilmente passaria qualquer carro de passeio, mas Manoel, com sua habilidade de anos dirigindo por essas ruas, fazia com que a pequena van vermelha trafegasse por elas sem problemas.

Finalmente chegaram à Pousada da Serpente. Um prédio amarelo, portas e janelas pintadas de cor verde, desbotado com o tempo, aparentava ter três andares, com telhado envelhecido e cheio de plantas. Manoel desceu do carro, pegou as malas dos hóspedes e entrou na pousada, pediu a filha que falasse para moça esperar.

Ao voltar, com sua esposa ao lado, Manoel ajudou a moça a sair do carro e pegou sua mochila.

"Meu bem, essa moça estava na rodoviária, desamparada, Carol falou com ela e ela pediu nossa ajuda"

A mulher abriu um sorriso sem graça e estendeu a mão para cumprimentar a moça que estava acanhada à sua frente.

"Prazer, sou Dona Pêta"

"Ela não fala português" exclamou Manoel.

"O nome dela é Fleur" disse Carol logo em seguida e cochichou alguma coisa para a jovem.

Fleur abriu um grande sorriso e disse: "Bom dia"

Flor passou a usar sua versão aportuguesada do nome muito por causa da sonoridade que, apesar de parecida com o verdadeiro, soava de forma mais amorosa. Aprendeu a falar português com uma certa fluência e não saiu da pousada, conseguiu um pequeno quarto o qual pagava com seu trabalho na recepção e na ajuda com o café da manhã.

Tinha um carinho muito grande por seu Manoel e Dona Pêta, mas foi com Carol que criou laços mais fortes. Contou para os três, em uma das noites cheias de calor onde os três sentavam à porta da pousada, que fugiu da sua cidade natal, Voledam, na Holanda, logo após a morte de sua mãe, não aguentou ficar com seu padrasto que abusava e maltratava ela e sua irmã, Eva. Por uma tragédia do destino, Flor conheceu um cafajeste na estação de trem de Amsterdã que a fez mudar de ideia quanto seu sonho de ir à França e arrumou as documentações para que eles pudessem ir direto para São Paulo onde, depois de uns dias em um hotel vagabundo e fedendo a mofo, o malandro sumiu com quase todo o dinheiro que ela conseguiu roubar das economias da mãe inclusive seus documentos, que estavam na bolsa que guardava o dinheiro, foram elevados. Flor ficou apenas com o dinheiro que guardava em sua mochila, pegou um ônibus na rodoviária de São Paulo sem saber o seu destino e a falta deste fez com que a moça viesse parar em São Luís do Maranhão, último ponto da rota.

Toda essa reviravolta em sua vida não apagou o belo sorriso no rosto da holandesa. Sempre fazia suas obrigações cantarolando musicas em francês e distribuindo "bom dia" e "seja bem vindo" para todos os hóspedes.

Seu momento preferido era logo após o café da manhã quando tinha um tempo para passear em sua bicicleta.

Flor já era conhecida no centro da cidade, um de seus passeios favoritos terminava na Praça João Lisboa onde uma velharia gastava seu tempo jogando conversa fora ou jogando dominó. A holandesa fez amizade com todos, gostava daquele momento e eles, claro, adoravam a companhia dela. Há quem diga que o ponto alto de movimentação da praça acontecia justamente quando Flor estava presente.

A moça dividia sua atenção entre uma partida de dominó onde um ou outro abria um sorriso sem dentes quando ela comemorava uma vitória, e uma conversa sobre sua cidade natal. Mas todos gostavam quando Flor começava a cantar, em francês, música que lembrava sua mãe, a emoção na voz fazia com que os velhotes se emocionassem juntos.

Dentre os que mais conversavam com Flor estava Seu Raimundinho que trabalhava como engraxate na praça, ele já tinha oitenta e dois anos e seus dedos eram encolhidos devido a artrite e os calos causados pela profissão.

Como todos os dias Flor aparecia para alegrar a vida dos presentes no dia de sua ausência esperaram até o horário de costume para se darem conta que ela não apareceria mais. Uma forte onda de preocupação tomou conta de todos os presentes.

"O que aconteceu?" Perguntou Seu Raimundinho para um moleque que entregava salgados para diversas pousadas, inclusive a que Flor se hospedava, "Cadê a Flor?" O moleque balançou a cabeça negativamente e disse que talvez ela estivesse com problemas. A turma de velhotes elegeu Oscar, ex fiscal de rendas e, portanto, um dos mais letrados, para averiguar a situação e ele prontamente se deslocou até a Pousada da Serpente.

Todos já estavam aflitos quando Oscar chegou, suando em bicas, e começou a falar.

"Seu Manoel me falou que Flor está com problemas com a justiça, alguém no país dela está exigindo que ela seja presa pois roubou um dinheiro e estão querendo enviá-la de volta para a Holanda"

Ao término da frase todos se viraram para Pedico, que estava sentado em um dos bancos. Pedro Morais, o Pedico, era um dos poucos velhos que ainda trabalhavam, dava meio expediente como despachante na delegacia de Polícia Civil.

"O que foi pessoal?" Exclamou Pedico, com uma certa surpresa.

"Como que pode? Isso acontecer embaixo do teu nariz e você não nos avisar? É muita falta de consideração com a gente, logo nós que fazemos parte do clube do dominó" Falou Seu Humberto, taxista.

"Eu não sabia de nada" disse Pedico, cabisbaixo "Vou averiguar assim que chegar no trabalho"

"Acho que inclusive está na hora, não acha?" Falou Seu Raimundinho.

Às seis horas da tarde o movimento da Praça João Lisboa se deslocou para a porta da Delegacia, todos à espera de Pedico para saber da situação do processo de Flor.

"Más notícias meus bons, Flor vai ter que pegar o avião de volta amanhã, já é um caso federal"

"Você é um incompetente!" Disse Seu Luis, dono da Farmácia "Droga é Vida", partindo pra cima de Pedico, mas foi contido por seus colegas.

A turma se desfez outra vez.

No outro dia, seis horas da manhã, um aglomerado de velhotes começou a se formar na frente da Pousada, Dona Pêta, com uma cara inchada de choro e sono recebeu o comitê de aposentados na pequena recepção. Quando a polícia chegou, uma tentativa de cordão de isolamento foi feito pelos velhinhos, mas sem sucesso.

A polícia entrou em um dos quartos e levou a pobre moça, que chorava quando abraçou um por um, tentando forçar um sorriso. Aquilo partiu o coração de todos.

A nova pauta das reuniões na praça João Lisboa era saber se alguém tinha notícias de Flor.

Todos estavam reunidos, menos Pedico, que foi expulso do clube do dominó.

You Might Also Like

0 comentários

Flickr Images