Meu último dia

19:47:00

Acordei hoje com a certeza de que iria morrer.

Uma dor de cabeça infernal, enjoos e uma agulhada forte no coração. Já fazia alguns meses que não me sentia tão mal assim.

Seis meses atrás recebi o diagnóstico de um maldito câncer na cabeça que me levaria à morte em pouco menos de um ano, por isso mesmo tenho a certeza de que o ceifador do inferno veio acertar as contas comigo hoje.

Enquanto todos os demais encaram a morte com doçura e sensatez eu me tornei a pessoa mais amargurada da face da terra, não tenho raiva de Deus, não acredito nele, mas raiva dessa vida de merda que levamos.

Levantei, fui para o chuveiro. Se existe uma ocasião perfeita para morrer é enquanto se toma banho, passei alguns minutos pensando nisso e dentre outros devaneios percebi que hoje vivo melhor do que muitos, quantos, com minha idade, teriam o tempo livre que eu tenho? É um privilégio para poucos. Chega a ser até irônico, justamente quando eu tenho apenas pouco tempo de vida eu aprendi o que realmente é viver. Depois de trinta minutos me arrumei e pensei no que iria fazer pra aproveitar essa oportunidade de viver cada dia como se fosse o último (e hoje é).

O lado bom de ter pouco tempo de vida é que você não precisa se preocupar em como vai viver (ou sobreviver), as pessoas se solidarizam e tentam viver por você. É como andar em um metrô onde todos os outros passageiros sabem que você vai descer no próximo ponto e cedem o lugar para você ter alguns minutos de conforto. Eu me aproveitava disso, no começo com um pouco de vergonha, agora, sem caráter algum. O namorado da minha mãe me cedeu um carro para passar meus últimos dias. As minhas tias traziam meu mercado e tudo que eu preciso para não morrer de fome antes de morrer pelo maldito tumor na minha cabeça. Eu tinha tudo à um telefonema de distância, nem precisava fazer drama algum.

'Alô, tia Maria, você teria um pouco de açúcar para me emprestar?'

'Tenho sim, fiz compras ontem, você quer que eu leve aí para você?'

Tia Maria morava dois prédios de distância.

'Se não for pedir demais, acordei hoje muito com muito cansaço.'

'Claro que sim, em um minuto deixarei na portaria do teu prédio, já estava de saída mesmo.'

'Eu agradeço, a senhora é um anjo.'

Desliguei o telefone e voltei a ouvir música e limpar minha coleção de discos. Outro lado positivo quando se está prestes a morrer: poder falar o que quiser. E hoje, além da dor infernal em minha cabeça, acordei com uma vontade absurda de discutir com alguém.

Peguei as chaves do carro e fui em direção ao elevador. Antes de apertar o botão do térreo, Dona Rute, minha vizinha quarentona e viúva, segurou a porta e entrou com o cachorro antipático dela.

'Vai ser essa!' Pensei.

Comecei a cantarolar uma música do Guns 'N' Roses a qual escutava todos os dias.

'Você bem que poderia escutar essa música em um volume mais baixo, não acha?'

Bom, foi ela quem começou.

"Dona Rute, das vezes que eu escutei músicas em um volume alto, inclusive de madrugada, foi para abafar o som do sexo que acontecia no meu quarto. Ou a senhora pensa que eu não percebo que a senhora cola seu ouvido na nossa parede em comum?"

Dona Rute corou.

Durante todo o percurso entre os dezesseis andares até chegar na garagem, o silêncio tomou de conta daquele cubículo que se deslocava arrastando pelas paredes daquele prédio velho.

A única coisa que conseguia pensar naquele momento era algo além do remorso de falar daquele jeito com Dona Rute, ela merecia aquilo, mas eu entendia ela, às vezes eu colava o ouvido quando seu Rubens, o porteiro do prédio, fazia uma de suas visitas secretas na casa dela, foi hipocrisia minha. Eu sentia falta do sexo, não do amor, do sexo mesmo, de uma relação casual, a qual só tive duas oportunidades em toda a minha vida. Mesmo morrendo e com alguns meses de vida na minha conta a minha situação não melhorou muito em se tratando da minha vida amorosa, as pessoas queriam comprometimento, nunca tive, nem quando eu tinha vida de sobra.

A maioria das pessoas sentem uma vontade de se comprometer que acabam superestimando qualquer relação.

Como sexo não estava em questão no momento e não estava a fim de pagar por isso (pra quem eu ligaria pra pedir dinheiro? Pra Tia Maria que não seria). Resolvi ir para o bar. Este é outro local perfeito para morrer. Dentro de um bar envolto do próprio vômito. Na verdade é nojento mas é um local ideal para um ser moribundo.

Tenho poucos amigos e todos eles estão trabalhando nessa terça-feira ensolarada. Então beber acompanhado por alguém que partilharia meus últimos minutos de vida está fora de cogitação.

Resolvi ir ao PUB que trabalhava, costumava funcionar a partir das dez horas. Lá eu tinha cerveja de graça, fornecida pelo meu ex chefe, a título dos serviços prestados e, segundo ele, pela amizade. Na verdade era somente mais um com pena de mim, mal sabíamos o verdadeiro nome um do outro. Mas não estou reclamando, se trata de cerveja gratuita.

Sentei em uma mesa enquanto Raquel, com um ar triste, me servia as cervejas que eu pedia. Atualizei todos os ex funcionários sobre meu atual estágio de doença que é algo mórbido que desperta interesse de todos. Para alguns, os mais próximos, alertei que talvez essa seria minha última visita, gostava de ver a decepção no olhar de cada um. Infelizmente hoje eu tenho mais certeza da minha morte que nos outros dias que eu fiz o mesmo alerta.

Saí do PUB por volta das oito da noite, liguei para meu amigo Marcelo me buscar, contei, chorando, o que havia se passado e minhas previsões para até meia noite.

'Estou morrendo, Marcelo. Que merda'

Cheguei em casa, me joguei na cama, já não sentia mais as dores de cabeça. Mas meu coração batia a um ritmo descontrolado. Em poucos minutos, enquanto eu olhava para a minha coleção de discos antigos, senti a dor se aproximando. Apaguei.

Acordei no outro dia, com uma ressaca infeliz, meu peito dolorido, minha boca estava seca. Eu ainda estava viva, não sei se pra minha felicidade ou tristeza, a única dor de cabeça que eu sentia era por causa das cervejas que eu tomei no dia anterior. Estava eu, sentada à beira da cama, uma mulher de trinta e seis anos, descabelada, com os dias contados e tendo que aguentar mais um dia nesse mundo de merda.
Acho que morro hoje.

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